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As Misericórdias

e a Igreja

Nestes últimos tempos a comunicação social fez eco de palavras azedas da União das Misericórdias contra os bispos portugueses, pelo facto de a Conferência Episcopal e a Santa Sé terem definido as Misericórdias como associações públicas de fiéis, pondo termo a um diferendo de há vários anos, cujo desfecho era previsível, sobretudo depois de a Igreja Católica ter publicado em 1983 a última versão do Código de Direito Canónico, que obriga os bispos da Igreja Católica do Ocidente a pautar-se por ele, em alguns casos deixando a concretização de certas matérias para a legislação particular dos diferentes países.

Foi o que aconteceu com as Misericórdias, um património importante da sensibilidade cristã dos portugueses e que há mais de quinhentos anos tem sido uma grande referência na prática da caridade para com os mais desfavorecidos. Isto foi bem reconhecido pela Igreja, pelo povo e pelo Estado através dos séculos, dotando estas instituições de muitos meios para continuar a realizar a finalidade para que foram fundadas em 15 de Agosto de 1498, na Sé de Lisboa, sob o impulso da rainha D. Leonor e de frei Miguel Contreiras.

O prestígio das Misericórdias fez com que, por vezes, alguns se servissem delas para usufruírem desse prestígio, ao contrário do que nos prescreve o Evangelho, que devemos praticar o bem sem acepção de pessoas e que a mão esquerda não deve saber o que faz a direita, isto é, devemos servir os necessitados por amor e não servirmo-nos deles para os nossos interesses. Mas tudo o que é humano tem os seus desvios e, por vezes, é preciso corrigir, o que aliás até é uma das catorze obras de misericórdia: corrigir os que erram. Mas quem corrige quando há desvios? Quem é responsável quando alguma instituição se afasta das suas finalidades? Em primeiro lugar, serão os próprios membros da associação a fazê-lo através dos seus órgãos, de acordo com os seus Estatutos. No entanto, acontece que os órgãos são, por vezes, constituídos por pessoas incorporadas por compadrio e não segundo o espírito associativo próprio; neste caso o compromisso evangélico das obras de misericórdia. Quem tem autoridade para fazer com que isso se cumpra?

Quantas queixas de listas ideológicas e partidárias que tentam tomar conta dos órgãos sociais ou nos deparamos com algumas Misericórdias sem vida mas consumindo o seu património! Felizmente a maioria cumpre e desempenha um grande papel social. Mas quando os membros não se entendem, se fecham as admissões de irmãos, se fazem assembleias sem participação de irmãos e se tomam decisões ruinosas, quem tem a tutela para intervir? Quem as defende da ambição do poder político, como tem acontecido ao longo dos séculos? Quem aprova as actualizações e alterações do compromisso e dos Estatutos?

É a resposta a estas questões que o actual decreto veio ajudar, para que as Misericórdias continuem a ser grandes associações de pessoas de bem, cujo único objectivo é o bem fazer, para isso orientando toda a sabedoria, generosidade e recursos, neste tempo de crise mais necessário que nunca. Sem legislação segura, sem protecção legal por acordos internacionais, como é a Concordata entre Portugal e a Santa Sé, as Misericórdias não resistirão às ambições humanas e do poder. Por outro lado, conhecemos a morosidade da justiça portuguesa, o que pode ser altamente prejudicial para a acção social das Misericórdias. Já muitos tribunais civis remeteram questões das Misericórdias para o tribunal eclesiástico e a Santa Sé veio corroborar e confirmar as suas decisões. Mas não podemos continuar com dúvidas a este respeito.

A Igreja não quer os bens ou o património das Misericórdias, como nunca o fez, antes pelo contrário, em alguns lados disponibiliza gratuitamente as instalações, para que as Misericórdias e outras instituições humanitárias e sociais possam continuar a desempenhar a sua missão. Quem tem cobiçado os seus bens e os da Igreja têm sido outras forças do poder civil, como o comprovam as nacionalizações dos bens da Igreja ao longo dos séculos. O Estado, por vezes, tem ambições totalitárias, em vez de defender a subsidiariedade e apoiar a sociedade civil, que serve melhor os interesses das pessoas e do país, sem onerar em demasia o erário público. O centralismo do Estado e a funcionalização dos serviços sociais não traz vantagens para os cidadãos. Mas este é outro discurso, que fica para outra altura.

Conclusão: as Misericórdias são parte importante do nosso tecido social e cristão. Todos, Estado, Igreja e cidadãos, temos de lhes estar gratos e apoiar os homens bons e competentes que aceitam desempenhar os ofícios para que são escolhidos pelos irmãos. Tente-se o entendimento, regulamentar as relações entre a hierarquia da Igreja e as Misericórdias, de acordo com o direito e a grandeza destas instituições, que precisam de autonomia para cumprir as suas finalidades, sem caírem num secularismo fechado à comunhão com a Igreja, em cujo seio nasceram. Apoiemos as pessoas de bem com capacidade para dirigir estas instituições, incentivemos o espírito associativo e fraterno, e todos ganharemos com a transparência e o cumprimento do compromisso cristão das Misericórdias.