O cristão é um discípulo de Cristo
O “kerigma pascal”, enquanto anúncio da ressurreição, reaviva no coração dos cristãos a sua qualidade de discípulos, situação já conhecida entre os crentes de Israel, mas que ganha um sentido novo no caso de Jesus Cristo. Mesmo para aqueles que tinham seguido Jesus, antes da Sua morte, ao qual chamavam Mestre, não é a mesma coisa ser discípulo do Ressuscitado. Seguir Jesus, na Sua Páscoa é abrir-se ao dinamismo do Espírito, é aceitar ser membro do novo Povo de Deus, é aceitar ter como meta neste mundo a santidade e como etapa definitiva a Casa do Pai, na Jerusalém Celeste.
Acreditar em Jesus Cristo é aceitar segui-l’O, ao ritmo do Espírito, que transformará as nossas vidas com a exigência da caridade. A existência crente aparece-nos como um caminho a percorrer, seguindo Alguém, que nos introduzirá nos segredos da vida nova do Reino de Deus. A fé é uma confiança sem limites nesse Alguém. Passa para segundo lugar a importância de conhecer as etapas do caminho e a definição clara do destino a atingir: basta-nos segui-l’O, aceitando que o Seu caminho seja o nosso caminho e o Seu destino seja o nosso destino. O cristianismo é, acima de tudo, uma fidelidade pessoal a Jesus Cristo, a Quem confiamos o destino da nossa vida.
Ser discípulo é seguir voluntariamente alguém que se aceita como mestre, identificando-se com a sua visão da vida. O mestre introduz o discípulo numa “sabedoria”, numa visão da vida. O conceito não é muito comum no Antigo Testamento e aparece somente no judaísmo tardio. Isto deve-se ao lugar central da Palavra de Deus como fonte da sabedoria. Nenhum mestre humano, por mais sábio que seja, pode iniciar o crente nos caminhos da vida. Só Deus, com a Sua Palavra, o pode fazer. Os Profetas descrevem os tempos messiânicos como um tempo em que os crentes serão “discípulos de Deus”: “Todos os teus filhos serão discípulos de Yahwé” (Is. 54,13). Por sua vez Jeremias descreve assim a “nova aliança” que Deus celebrará com o Seu Povo: “A Aliança que farei com Israel depois desses dias é a seguinte – oráculo de Yahwé: colocarei a minha Lei no seu peito e escrevê-la-ei no seu coração; serei o seu Deus e eles serão o Meu Povo. Ninguém mais precisará de ensinar o seu próximo… porque todos, grandes e pequenos Me conhecerão” (Jer. 31, 33-34).
Ao seu Servo, figura do Messias e modelo para todo o Povo de Israel, Deus deu a capacidade de falar como discípulo e ouvidos de discípulo para escutar a palavra do Senhor (cf. Is. 50,4-5). A certeza de que Deus é o único Mestre está patente na oração de Israel: “Senhor, faz-me entender o caminho dos Teus preceitos e eu meditarei sobre as Tuas maravilhas” (Sl. 119,27).
Os discípulos de Jesus seguem-n’O como Mestre; é assim que O tratam habitualmente. E Jesus assume-se como tal: “Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou” (Jo.13,13). Esta aceitação, por parte de Jesus, da Sua qualidade de Mestre, tem a ver com a Sua consciência de enviado do Pai. Ele não contradiz o ensinamento dos Profetas, segundo o qual só Deus é o nosso Mestre e só a sua Palavra é fonte de sabedoria. O seu ensinamento enraíza no que Ele aprendeu do Pai (cf. Jo.8,28). Por isso as Suas Palavras “são espírito e vida” (Jo. 6,63).
Como Mestre, Jesus destaca-se dos “doutores da Lei”, mestres de Israel. De facto, depois do regresso do exílio, é dado grande relevo ao ensinamento da Palavra de Deus e aqueles que a ensinam são chamados “doutores da Lei”. Mas bem depressa extravasam do ensinamento da Palavra de Deus para os seus próprios ensinamentos. Tinham-se tornado uma instituição prestigiada. O próprio Paulo reconhece ter sido discípulo de Gamaliel (cf. Act. 22,3). Jesus aconselha os discípulos a não chamarem, a ninguém, Mestre, porque o verdadeiro Mestre é um só, Deus, e denuncia a hipocrisia dos doutores da Lei, que não testemunham com a vida aquilo que ensinam pela palavra: “os escribas e os fariseus ocupam a cátedra de Moisés; fazei e observai tudo o que eles dizem, mas não vos reguleis pelas suas acções, porque dizem e não fazem” (Mt. 23,2-3), e denuncia veemente essa hipocrisia (cf. Mt. 23,13ss).
Ao assumir-se como Mestre, Jesus sabe que o Seu ensinamento é o de Deus, a Palavra que escutou de Seu Pai e, aliando a Sua missão de Mestre à do Servo de Yahwé, Jesus é profundamente coerente, na Sua vida, com aquilo que ensina, aceitando a expressão mais radical dessa coerência, que foi a Sua morte. “Se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Eu dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo. 13,14). Ser discípulo de Cristo significa, não apenas escutar os Seus ensinamentos, mas imitar a sua coerência de vida. O Senhor foi Mestre pela Palavra e pelo exemplo.
Cónego Jorge Seixas |